Táxi com Gardel

Num comentário recente neste blog, Daniel Caceres fez referêcia a um post antigo que falava de uma corrida de táxi inusitada.  Caceres é um amigo da chamada pré-história da blogosfera. O post em questão é de 03 de dezembro de 2003. O primeiro post do meu primeiro blog. Não havia pretensão nenhuma. Apenas a vontade de escrever. O que vem a seguir é uma crônica. O fato original deve ser de 1994 ou 1995. Como ocorre nas crônicas, há alguma ficção. Só não sei mais onde está a ficção.

Republico agora – sob o pretexto do comentário do Caceres e aproveitando a pausa carnavalesca – porque gosto e quero preservar essa motivação de escrever pelo prazer de escrever.

Como diz o Virgílio, “Bom carnaval, camaradas!” “Não se esqueçam de levar a luta de classes!”

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Carlos Gardel

Carlos Gardel

Estávamos eu e um amigo numa festa chata desde o início e mais chata ainda no final, que custava a chegar. Quando já não suportávamos mais o tédio, nos despedimos da anfitriã e dos “simpáticos” convivas. Nosso objetivo era encontrar um bar qualquer para continuarmos a beber em melhor companhia; a nossa própria. Antes de ganharmos a rua, a anfitriã nos presenteou com uma sacolinha de supermercado cheia de latinhas de cerveja. Muitos convidados, mais seletivos, não compareceram e estava sobrando cerveja. Como não sabia o que fazer com aquilo, nossa amiga nos empurrou algumas latas. Finalmente escapamos aliviados daquela roubada em que tínhamos nos metido. Começamos a caminhar pela rua, madrugada, cada um bebericando a sua latinha de cerveja e eu carregando aquela improvável sacolinha com várias Heinekens dentro.

Por sorte, do nada, surge um táxi. Um Santana amarelo (ainda era a cor dos táxis de BH). Sinalizamos e o táxi parou. Entramos e pedimos ao motorista “nos leve ao Diário da Noite”, um já há muito tempo extinto bar 24 horas de Belo Horizonte, que àquela hora estaria repleto de garotas de programa e senhores bêbados criando coragem para contratar os serviços das garotas.

Taxímetro Antigo

Tec... Tec... Tec...

Ouvimos no táxi uma música diferente, capaz de criar um clima etílico e decadente na medida exata. Estávamos com as nossas cervejas, ouvindo aquela música estranha e bonita. Só faltava um cigarro. Pedi um ao meu amigo. Não tinha. Na verdade, a gente nem fumava. Mas o clima exigia um cigarro. Ouvindo o pedido e se solidarizando com os passageiros noturnos, o motorista nos ofereceu o seu maço. Aceitamos. Lembrei-me do saquinho de supermercado e ofereci ao motorista uma Heineken. Aceitou prontamente, com um sorriso de agradecimento. Seguimos, então, tomando a nossa cerveja, fumando os nossos cigarros (o motorista também acendeu um) e ouvindo aquela música estranha e bonita, cantada em espanhol.

Meu amigo perguntou ao motorista que música era aquela. Ele, muito espantado com a nossa ignorância, disse, com direito a muitos elogios, que era o grande Carlos Gardel. E era mesmo bonita a música do Gardel. Fizemos também os nossos elogios.  Empolgado, meu amigo fez uma proposta de compra da fita cassete. O motorista recusou veementemente. Não venderia em hipótese alguma. Continuamos o nosso caminho ouvindo Gardel, tomando cerveja e fumando. Ao fundo o “tec-tec” da mudança dos números no taxímetro antigo.

Fita Cassete

Reproduzir não era tão fácil, mas não era difícil

Chegando ao bar, já éramos três velhos amigos admiradores do grande Gardel. O motorista parou o Santana amarelo. Dei a ele mais uma latinha. Ele nos deu mais cigarros. Meu amigo renovou a oferta pela fita, já sabendo que o motorista não venderia. E não vendeu mesmo. Quanto marcava o taxímetro? Não importa. O motorista não cobrou. Disse que nunca tinha ganhado latas de cerveja de passageiros e que não poderia cobrar dos novos velhos amigos. Ficamos felizes, não pelo dinheiro que economizamos, mas porque nunca tínhamos pegado um táxi ao som de Gardel e trocado cervejas por cigarros com o motorista.

Ocupamos uma mesa na calçada e continuamos a beber a nossa cerveja e conversar (apesar das condições já não serem as melhores) até o amanhecer. Enquanto isso os senhores foram criando coragem e saindo com as garotas de programa para fazer, é óbvio, um programa.  O bar ficou vazio.

Nunca mais vi o motorista. Nunca mais ouvi Gardel. O meu amigo não sei por onde anda. Mas nunca mais esqueci essa noite. Acontecimentos como esse me fazem pensar que poderíamos ser muito mais felizes, que o mundo poderia ser muito melhor e a vida mais leve.

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5 respostas para Táxi com Gardel

  1. Mônica disse:

    Foi bom reler esse texto. 🙂

  2. Virgílio disse:

    Um texto lindo.
    Ganha dez quem souber cantar “Por una cabeza…” E não vale dizer que “nem meu avó lembra disso”, tem uma cena maravilhosa com um cego neurótico de guerra dançando com uma bela mulher. O ator? Al Pacin0 (que sempre confundo, pode ser o Robert de Niro ou o Dustin Hoffman, acho todos muito iguais nos esgares). O filme era uma bobagem moralista made in USA, mas tem uma cena dele cego dirigindo uma Ferrari e essa da dança.
    Carlos, ocê tem que aplicar a gente nessas suas crônicas. Em Niterói chamamos a isso de LITERATURA, com todas as letras maiúsculas em sinal de muita admiração.
    Taí um que não precisa tirar a luta de classe pra dançar.

    • Carlos Magalhaes disse:

      Obrigado, Virgílio. Não tenho muita coisa para aplicar, não. Mas de vez em quando vou colocar alguma coisa no blog.

  3. Virgílio disse:

    Serviço de utilidade pública: http://www.vagalume.com.br/carlos-gardel/por-una-cabeza-traducao.html
    “Já pensou isso no trio-elétrico véi? Tipo assim o povo pulando atrás?” – Você deve conhecer alguém assim.
    Jogando, bebendo, trepando e o Senhor Jesus atrás do cara só abençoando, abençoando, abençoado. Amém, Jesus.

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